quinta-feira, 4 de março de 2010

Mais um Ano


Fiz anos há uma semana e confesso que não estou nada feliz com isso. Não sei se é o peso da idade, da responsabilidade, mas secretamente acho que é apenas o olhar para trás e fazer comparações, do tipo: «Eu o ano passado, estava a fazer isto e mais aquilo. E agora?». Ora eu olho para trás, e estava precisamente na mesma, ou talvez melhor do que me encontro agora. Mas reconheço que essa sensação também se pode dever à visão pessimista com que ando da vida.
A R. diz-me que não tenho motivos nenhuns para pensar assim porque sou feliz, jovem, bonita, independente, tenho um emprego e uma casa. Pensando em tudo isso, chego à conclusão que, se calhar, não tenho mesmo motivos nenhuns para estar triste, o mais que posso estar, se não consigo estar feliz, é ficar normal e apática, como se nada se passasse.
As pessoas que me rodeiam estranham a minha tristeza quando vejo a data do aniversário a aproximar-se. Mas nem eu sei explicar porque me sinto assim, quando faço anos. Este sentimento é relativamente recente, porque dantes não me lembro de ficar assim. Há bem poucos anos atrás, nem conseguia dormir na véspera, com a agitação e o entusiasmo, pensando nos preparativos, nos amigos, nas festas, nos bolos, nas prendas, nos telefonemas. Era um jantar com a família, outros com os amigos, bolos, doces, fins-de-semana fora, noitadas malucas, parabéns cantados, velas sopradas, apagadas e mordidas, e aquele desejo secreto pedido em silêncio com a certeza plena da sua realização. Beijos, abraços, postais, flores e telefonemas. Tudo isso perdeu o encanto, para mim, agora.
Não acho a menor piada a fazer anos, e intimamente desejava que esse dia fosse apagado do calendário anual, ou que todos milagrosamente se esquecessem dele, e me deixassem esquecer também, que mais um ano passou e que as metas que tracei para mim parecem cada vez mais distantes.
Acho que estou mesmo a ficar velha, ou então é um vírus que anda aí e me ataca todos os anos na altura do meu aniversário.
Bem, também não interessa. Tenho de viver este dia e não há nada a fazer, não é? Esperava em segredo poder passá-lo todo a dormir, sem ninguém se lembrar que eu existo, e assim ficaria na paz dos anjos, esquecida de que tenho mais um ano, e se calhar tudo se passava sem eu dar por isso.
Mas não, novamente não consegui levar adiante os meus intuitos. Era 00h05m quando me ligaste. Mais uma vez foste a primeira pessoa a dar-me os parabéns. Desatei a chorar quando ouvi a tua voz, nem sei bem porquê. Senti-te estupefacto do outro lado do telefone ao ouvires o meu pranto. Acho que nem eu sabia porque estava a chorar tão desesperadamente. Apetecia-me chorar, só isso, tinha de libertar toda aquela angústia de qualquer maneira. E quando tu ligaste, nem sei se me senti feliz, se triste…
Perguntaste-me o que se tinha passado para estar a chorar daquela maneira. Eu respondi-te entre soluços, que estava triste. E tu, numa daquelas saídas maravilhosas disseste «Até aí, já tinha chegado. Não conheço ninguém que chore assim de felicidade».
Perguntaste em seguida porque é que estava triste. Lembro-me de na altura me terem passado mil e uma ideias pela cabeça, mas nenhuma concreta e plausível para explicar ou justificar o meu estado de espírito naquele momento.
Só me ocorreu dizer-te que estava deprimida…Como te explicar afinal de contas esta avalanche de sentimentos que vão dentro de mim? Ou será que é preciso explicar? Será que tu já não sabes exactamente como me sinto, apesar de não ter pronunciado uma palavra?
Será que não sabes que me sinto profundamente infeliz, desamparada, perdida, frustrada, com medo de tudo e de todos? Com vontade de correr para ti e sufocar-te num abraço? Com vontade de desaparecer e regressar aos cinco anos de idade, para não ter responsabilidades nem medos e para ter alguém que cuidasse de mim? Tenho uma imperiosa necessidade de alguém que me proteja. Sinto-me tão estúpida e tão frágil por confessar isto, mas é verdade. Sei que tenho a mania que sou forte, e que ninguém me desafia e que viro o mundo do avesso, mas é mentira. Por dentro sou a criatura mais frágil que possas imaginar. Tenho tantos medos e inseguranças, que às vezes sinto que carrego o mundo às costas, e só tenho vontade de me esconder debaixo da cama, como quando fazia em criança, e rezar para que ninguém me encontre, e me deixem sossegada.
Às vezes rio-me com vontade de chorar, e quase sempre falo alto e de forma arrogante quando me sinto como um coelhinho assustado. É contraditório, eu sei. Mas tu sabes que comigo, nada é fácil. E afinal de contas, se as pessoas fossem todas simples e não complexas, o mundo era perfeito, não havia guerra, nem fome, nem injustiça, nem sofrimento. Temos de aceitar as coisas como elas são, e tentar tirar o melhor partido daquilo que nos rodeia.
Ah, mas às vezes não é nada fácil…
Entretanto tentaste-me animar, e dizer que eu não tinha motivos para estar assim tão infeliz. Mas eu continuei a sentir-me a mulher mais triste ao cimo do planeta e arredores, e com uma incomensurável vontade de te pedir colo e miminhos. Mas, mais uma vez, fiz-me de forte e disse-te que já me sentia melhor.
A partir daí começou a anual e já habitual torrente de telefonemas e mensagens a congratularem-me por mais um aniversário. Se soubessem o meu estado de espírito nem uma palavra me diziam…Sei que estou a ser injusta, afinal de contas são pessoas que me amam e me querem bem, desejam apenas felicitar-me. E se ninguém me ligasse ou dissesse nada, como eu secretamente pedi, tenho a certeza que ficaria mais infeliz ainda, porque é da natureza do ser humano nunca estar contente com nada.
E então foi assim…Mais um ano se passou. As mesmas caras, os mesmos sorrisos. Obrigada pelos parabéns, gostei muito do cartão, a prenda é linda mas não queria que te estivesses a incomodar, pois mais um ano é verdade, já sou uma mulherzinha, o bolo tem recheio de ovo, a cobertura é de chocolate, sim senhor, está muito bom, desculpa vou rasgar o papel de embrulho porque não consigo abrir a prenda, oh tão bonito, estava mesmo a precisar, gostei muito, claro…
Amanhã acordo e já passou tudo.
Mas tenho mais um ano.



Rita

Texto Registado no IGAC

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Afinal sou Feliz


O meu chefe é um cabrão da pior espécie. Estou farta deste emprego e quero ser eu mesma, e aqui não vou conseguir.
Estou a ser sobrevalorizada e as minhas capacidades totalmente menosprezadas e ignoradas como um cão vadio que ninguém quer adoptar. Sinto que tenho que dar o salto e pirar-me daqui, é a minha vida, felicidade e realização profissional que estão em jogo. Mas que merda, porque é que eu aceitei vir para este jornal? Ah já sei, foi porque me ofereceram o dobro do salário que ganhava na revista. Eu deveria estar a trabalhar como free lancer e escritora, estaria desempregada decerto, mas pelo menos mais feliz do que estou agora. O cabrão atribui-me os artigos com três horas até ao fecho da edição, e ainda tem a lata de me mandar fazer correcções de última hora, que se prendem com rectificação de algumas «opiniões» mais contundentes que eu possa ter, só para não ferir susceptibilidades mais sensíveis. Acho isto ridículo e inadmissível. Por isso é que a comunicação social deste país está como está. Então eu tenho que escrever artigos para servir os interesses de uns e de outros? Não posso relatar as coisas como elas são? Não posso expressar livremente as minhas opiniões? Se era para isto, devia ter tirado um curso de esteticista e estava na Polinésia, a fazer tranças aos turistas e a beber pinas coladas num overwater bungalow qualquer. Garanto que estaria mais realizada, e ao menos aí poderia dizer o que bem me apetecesse, já que ninguém me censuraria, aliás correcção, ninguém me entenderia.
Realmente olho para trás e sinto-me desmotivada até às últimas.
De que é que serviram tantos anos de estudo, trabalho, dedicação, investimento pessoal e financeiro? De nada, absolutamente de nada. Estou aqui num jornal de segunda, a ser censurada por um seboso careca que escreve há de haver sem H, e que supostamente é meu chefe. Mas que às vezes até eu duvido que seja.
Tenho vontade de mandar esta gente toda à merda, levantar-me e ir-me embora. De lhe dizer que não preciso disto para nada. De gritar a plenos pulmões que escrever é a minha vida, a minha paixão, e não posso ser controlada ou cerceada com intuitos tendenciosos, para servir os interesses de uns manhosos quaisquer, que eu nem conheço. De me rebelar contra o sistema e a ordem instituída, fazer uma rasta no cabelo e ir lá para fora cantar canções de intervenção. Preciso encabeçar um motim neste jornal.
Olho para o lado. A minha colega Joana está concentradíssima no trabalho. Olho para trás. O meu colega Rui está ao telefone com a mulher todo meloso. A Susana traz-me um café e um donut como se estivéssemos naqueles jornais importantes de Nova Iorque. Tenho frio e fome, estou esgotada, quero sair daqui. Metade de mim quer-se amotinar na casa de banho e recusar-se a sair senão com a promessa do fim das injustiças, segregações, e precariedade laboral. A outra metade devora o donut e quer ir para casa aquecer-se à lareira e deixar as lutas para outro dia…Olho em redor, cada um está concentrado nos seus afazeres, uns a trabalhar, outros a fingir que trabalham, mas todos estão serenos e apáticos. Só eu aqui nesta agitação. Será normal? Se calhar bebi demasiado café hoje.
Mas sei que devia e que tenho de fazer alguma coisa para mudar este estado de coisas. A minha vida não vai mudar se eu não começar a agir e depressa. Estou com trinta anos, é agora ou nunca. A ansiedade começa a tomar conta de mim. Não quero fazer este trabalho a vida toda, morar num apartamento e ganhar mil euros por mês (abençoados eles sejam, não quero ser ingrata porque anda posso ficar sem eles e aí suicidava-me). Quero escrever livremente, quero novos desafios profissionais, quero evoluir profissionalmente e ser reconhecida pelo meu trabalho, quero ganhar dinheiro que me proporcione conforto. Quero ter uma casa grande com piscina e tudo a que tenho direito. Quero viajar, poder comprar aquilo que quero sem ter sempre de andar a fazer contas. Bolas, tenho direito a sonhar. Se calhar é pedir muito, mas afinal de contas eu não estou a pedir nada, senão a mim mesma. Sou ambiciosa e sempre o fui, mas a ambição é uma coisa boa, é uma força motriz, é um motor de desenvolvimento do EU. Se nos contentamos com o que já temos, então o que vamos fazer para melhorar? Nada. Vamos ficar a preguiçar e à espera que chegue a hora de ir para casa sem fazer nada de novo, e útil, sem acrescentar nenhum valor a esta sociedade tão medíocre que já temos. E eu não quero isso para mim. Sonho com voos bem altos e tenho o direito a fazê-lo porque sempre tenho lutado por isso, através do estudo e contínuo investimento na minha formação e valorização profissional. Por isso recuso-me a aceitar que seja esta a minha vida para sempre.
Perdida nestas ideias revolucionárias e ansiando por mudança, levanto-me e vou à janela. Está tanto frio! Os vidros estão todos embaciados. Começo a fazer desenhos nos vidros como quando era criança e a minha mãe sempre a gritar, pára com isso que depois fica tudo sujo!
As pessoas correm para apanhar os transportes de volta a casa, numa azáfama de casacos, cachecóis, malas e sacos. Uma vendedora de castanhas esfrega as mãos uma na outra numa expressão de frio e desalento de quem não vendeu nada. As pessoas estão com pressa e também não há dinheiro para as castanhas. Isto está uma alta crise. Até as castanhas estão caras, uma dúzia dois euros, e ainda por cima fazem gases, algumas vêm com bichos, e o jornal suja as mãos. Coitada da vendedora!
Está um sem-abrigo à entrada do metro com um cobertor pelas costas, a pedir esmola. As pessoas passam por ele e ignoram-no, algumas com a pressa até tropeçam nele. Todos o vêm mas ninguém lhe dá uma moeda, ou sequer um sorriso ou uma palavra, e ele ali continua com o cobertor nas costas, gorro na cabeça e a barba banca já bem longa….Um cego desce as escadas do metro auxiliado por uma senhora idosa que o ajuda a atravessar a passadeira…Contemplo isto tudo como um espectador e começo-me a sentir mal. Mal comigo mesma.
Eu afinal estou-me a queixar do quê? Tenho um emprego, tenho uma casa quente onde dormir, tenho saúde, sou inteligente, tenho uma boa formação, sou jovem e bonita, do que é que me queixo? Sou injusta? Queria uma vida diferente, é certo, e lutarei por ela, mas já não é tanto e tão abençoado o que tenho? Certamente que é…Olho para estas pessoas anónimas e penso que vidas terão elas, que sonhos povoarão os seus pensamentos, que desejos secretos elas têm e se serão parecidos com os meus, se envolvem casas grandes cheias de crianças a rir, uma família reunida à lareira a contar histórias, cães e gatos, viagens, livros, bons vinhos, jantares e gargalhadas … Todas elas devem querer algo, desejar algo para as suas vidas, e em vez disso muitas têm a miséria, o desprezo da sociedade, a doença, a deficiência, a marginalização, a exclusão social.
E eu aqui a pensar que queria ganhar cinco mil euros por mês. Desço à realidade. Toca o telemóvel. É a minha mãe que quer que eu vá jantar lá a casa, porque fez carne assada recheada com castanhas. Pergunto-lhe estupidamente onde é que comprou as castanhas. Lamento em silêncio que ela me responda: no Pingo Doce, querida porquê? Esquece mãe, sou eu que estou a perder o juízo. Desculpa, mas fica para outro dia, quero ir para casa. Desligo o computador, dou a última trinca no donut e sorrio para a Susana que está a tirar cópias, com o ar mais feliz deste mundo. Penso que sou uma insatisfeita crónica. Vou-me embora para casa, porque amanhã é outro dia. Vou fazer o jantar, aquecer-me junto à lareira e acabar o meu livro de um só fôlego. Afinal sou feliz, só que ainda não o sei.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Polivalência Funcional


Dantes a vida das mulheres era bem mais fácil, embora não tivesse tanta dignidade e independência. Tudo tem vantagens e desvantagens e a emancipação da mulher não é excepção.
Antigamente, as mulheres viviam para tratar da casa e dos filhos. Viviam numa panóplia simplista de fraldas e panelas, cuidando das crias, alimentando-as, lavando-as, vigiando-lhes as febres e as dores dos primeiros dentes. Cozinhavam, tratavam da casa, faziam compotas, jardinagem e ponto cruz e eram felizes assim. No dia seguinte, acordavam de manhã e as rotinas eram exactamente iguais, mas as mulheres não se importavam e sentiam –se preenchidas dessa forma, mesmo que não tivessem ideais mais longínquos do que os de criar os filhos e vê-los crescer, e aperfeiçoar-se progressivamente nas tarefas domésticas.
Andavam sempre afogueadas com os tachos e com as pantufas do marido à lareira que chegava do trabalho e queria aquecer os pés. E eram umas escravas domésticas, que se fartavam de trabalhar mas que não ganhavam dinheiro, e se queriam comprar um vestido ou uns sapatos tinham de pedi-lo ao marido. Mas isto não era necessariamente mau. Porque se se tivesse a sorte de ter um bom marido, a vida era perfeita. Já que o marido entregaria todo o dinheiro à mulher para ela efectuar a gestão da casa, e ela faria o que bem entendesse com ele, sem lhe dar mais satisfações do que as estritamente necessárias. E efectuaria as compras indispensáveis para a casa, para os filhos e para ela , claro está. Ora digam-me lá, o que é que uma mulher precisa mais? Pensando bem, acho que não era assim tão mau quanto isso.
Agora se o marido fosse daqueles autoritários, arrogantes e prepotentes, que trata as mulheres como meras empregadas domésticas aí é que a coisa poderia ser feia. Isto porque ninguém gosta de trabalhar e não ser reconhecida, levar com maus modos, não ser respeitada nem admirada, e ainda ter de pedir dinheiro para ir ao cabeleireiro. Toda a gente, e sobretudo todas as mulheres gostam de ser reconhecidas, e as deste tempo não eram diferentes com certeza. Quando as coisas davam para o torto , as mulheres não podiam simplesmente mandar o marido passear e bater com a porta como fazem hoje. Tinham de aguentar em silêncio porque não tinham emprego nem meios de subsistência, e eram olhadas com desconfiança quando se separavam do cônjuge.
Mas tudo mudou. Agora as mulheres trabalham fora e dentro de casa e ainda trazem trabalho para casa. Levantam-se às seis ou sete da manhã, tomam banho, arranjam-se, dão banho aos filhos, vestem-nos e fazem o pequeno-almoço. Andam sempre a correr e stressadas. Maquilham-se nos semáforos e levam os filhos ao infantário. Chegam ao trabalho ofegantes como se tivessem acabado de correr a maratona , e é apenas neste momento em que se sentam à secretária, que experimentam algo mais parecido com o descanso. Trabalham freneticamente, mandam e -mails, atendem telefonemas, participam em reuniões, e durante tudo isto trocam sms com o marido perguntando -lhe o que deseja jantar, e falam com a mãe no telefone fixo para saber se ela está melhor da gripe.
À hora do almoço aproveitam para ir ao banco, aos correios, ao supermercado e buscar as camisas do marido à lavandaria. Almoçam uma sopa ou uma salada porque hoje em dia com a ditadura da moda e da magreza que as top models instituíram como lei para cumprir, sob pena de morte, uma gaja não se pode esticar muito nas gorduras nem nos hidratos de carbono mesmo que lhe apeteça comer este mundo e o outro.
Por vezes vão ao ginásio à hora de almoço para terem tempo de ir directas de casa para o trabalho, e passam a vida a gerir o tempo da forma mais eficiente possível , como se disso dependesse a sua sobrevivência, porque de facto depende.
Trabalham sem parar até chegar a hora de ir para casa. Correm novamente até ao infantário e abraçam os filhos, que gritam, contentes por rever a mãe como se já tivessem passado duas semanas. Chegam a casa numa azáfama de malas, sacos e filhos e fazem o jantar sozinhas, ou com a ajuda do marido se ele conseguiu sair a horas, dão a comida às crianças, dão –lhes banho, jantam, arrumam a cozinha, levam o cão à rua, e quando dão por elas mais um dia se passou.
Sentem diariamente a pressão de terem de ser perfeitas. De solucionarem todos os problemas, de estarem sempre bonitas, arranjadas, bem-dispostas, disponíveis, preocupadas, infalíveis. De lavar, passar, arrumar, cozinhar, tudo com um sorriso. De afagar os filhos e ajudá-los nos trabalhos de casa. De serem esposas, amantes, mães, executivas, donas-de-casa.
Quando é que as mulheres param? E ainda dizem que não há super -mulheres! Hoje em dia muitas mulheres são dotadas de poderes mágicos de abnegação, dedicação, força e resistência mais do que qualquer personagem invencível!
Quando é que deixamos de nos exigir progressivamente mais a nós próprias até entrar na espiral do desconforto e exaustão? Quando é que podemos ir ver a bola com os amigos, ir beber imperiais ao café da esquina sem ninguém nos perguntar porque é que deixámos a loiça por lavar ou a roupa por estender?
Porque é que as mulheres têm de saber fazer tudo e os homens têm de ajudar a fazer alguma coisa?
Sempre com algum esforço e com o argumento que são tarefas das mulheres? Que eu saiba, com a polivalência funcional, já não há tarefas das mulheres, pelo menos não agora nos tempos que correm. Isso era dantes em que as tarefas domésticas competiam às mulheres, mas as tarefas laborais competiam única e exclusivamente aos homens. Em vez disso, agora ganhamos o nosso dinheiro e podemos bater a porta quando queremos porque não precisamos de ninguém para nos sustentar, mas também trabalhamos dez vezes mais. Somos respeitadas e fazemos ouvir a nossa voz. Ganhamos o nosso próprio dinheiro, usamo-lo como queremos e não temos de prestar contas a ninguém. Fazemos acatar a nossa vontade e sentimo-nos úteis à sociedade e a quem nos rodeia. Acumulamos tarefas até à fronteira do cansaço, e desafiamos os nossos limites e uma coisa que se chama tempo , que é o recurso mais escasso na vida de uma mulher hoje em dia. Se o tempo se vendesse aí numa loja qualquer, eu seria decerto a sua maior consumidora, porque para mim o tempo nunca chega para as mil tarefas que tenho para cumprir, e precisava de um dia com cerca de cem horas para poder fazer tudo o que necessito. Eu e outras mulheres que vejo por aí, sempre a correr, sorridentes e perfumadas mesmo que às seis da manhã quando o despertador toca lhes tenha dado vontade de parar o mundo e esquecer tudo.
Chego à conclusão que prefiro a vida de hoje, mesmo com as chatices, mesmo com as resmunguices dos chefes, mesmo que faça as tarefas dos homens e das mulheres ao mesmo tempo e ainda use saltos agulha.
Tudo tem o seu preço, e este é o da polivalência funcional que escolhemos. E eu acho que, apesar de todas as contrariedades, valeu a pena.

Rita
Texto registado no IGAC

domingo, 6 de dezembro de 2009

Faltas-me


Talvez me falte algo, e ainda não tenha percebido o quê.
Talvez seja uma enorme falta de tudo, que me faz vaguear neste vazio, sem rumo, sem norte.
Mas pronto, penso eu que isto não será sempre assim…resta-me o consolo de ser apenas uma fase menos boa da minha vida que estou a passar.
Aliás, agora as fases estão super na moda, e são desculpa para tudo: para acabar relacionamentos, para usar as pessoas e maltratá-las, para agir incorrectamente, para se cometer as maiores irresponsabilidades e inconsciências, para afastar quem gosta de nós, para faltar ao emprego…
As fases são as maravilhosas desculpas da sociedade moderna para as falhas dos indivíduos. São uma forma de desculpabilização tão inócua e hipócrita que toda a gente recorre a elas. É tão simples dizer: «estou a passar uma fase», ou então para justificar determinado comportamento menos adequado, «é só uma fase má».
Mas eu acho que chega de fases e chega de desculpas. Que as pessoas comecem a dar a cara e a assumir os próprios erros, pois só lhes vai fazer bem. Aprendam a ter a humildade de pedir desculpa quando erram…de lamentar magoarem quem amam…Não é vergonha nenhuma pedir desculpa e mostrar arrependimento. Muito pelo contrário.
Pedir desculpa significa crescer, ter noção do que é bom e mau, do agir bem e do agir incorrectamente. E acho que isso só valoriza o ser humano. Assim como não é vergonha nenhuma chorar…
Nem gritar, berrar, esbracejar, espernear quando estamos tristes, furiosos ou simplesmente descontentes.
Afinal, se nos dotaram de sentimentos é para podermos sentir. Não somos máquinas, somos feitos de carne e temos sangue quente a correr-nos nas veias.
É tão bom sermos autênticos…dizer o que pensamos num ímpeto, num atropelo, deitar cá para fora tudo o que temos de bom e de mau.
Mas quanto mais genuínos formos, mas sensatos temos de ser, para termos capacidade de reconhecer os nossos erros, pois quem deita cá para fora tudo o que tem, num sopro de desafio ao Mundo, tem o dobro das possibilidades de ferir alguém por falar demais…
A vida é complicada.
Quando te foste embora ficou mais complicada ainda, embora no início eu não tenha demonstrado isso. Vesti a minha capa de super-mulher forte e segura, e tentei mostrar a toda a gente que estava a lidar bem com a situação. Mas depois de tanto representar, ficou um enorme vazio…O vazio da falta de afecto, o vazio da hipocrisia, e da vida a preto e branco.
Por isso comprei uma televisão enorme, de plasma, para a minha sala, com botões e funções que ainda hoje não sei para que servem. Acho que só tu sabes o significado deles, e acho que só tu me conseguias programar aquela maldita televisão como deve de ser. Para que eu voltasse a ver a vida com olhos de ver, para que as cores voltassem a brilhar, como os teus olhos brilhavam quando olhavam para mim. Mas eu sozinha não consigo regular as cores da porcaria da televisão. Acho que estão um bocado baças, como imagino os teus olhos agora…
Ou se calhar é do vidro que está um bocado sujo. Desculpas.
Acho que eu é que não ando mesmo a ver bem, sabes? Tenho de ir ao oftalmologista e comprar uns óculos novos. Eu sei que não gosto de usar óculos, e que vou gastar dinheiro nuns, mas tu sabes que lentes de contacto não posso usar. E agora até tenho usado os óculos, não é que goste, mas tem de ser, senão ando toda franzida. E depois fico com pés de galinha e envelhecimento precoce, e tenho de usar cremes para as rugas e fazer liftings e peelings. E depois também não quero ficar com a boca toda esticada e não poder rir.
Tu sabes que eu adoro rir. Rir, rir, rir, às bandeiras despregadas, até chorar e já não aguentar mais de dores na barriga. Há uns tempos que não me lembro de rir assim com vontade, não sei porquê. Deve estar relacionado com o facto de ainda não ter acertado com as cores da televisão…
Mas afinal de contas, só tu é que me poderias confirmar isso, porque sabes que eu e as máquinas temos aquela pequena incompatibilidade insanável.
Lembras-te quando eu explodi aquela máquina de café nova? Tu ficaste furioso e disseste que eu destruía tudo em que tocava. No outro dia dei por mim a lembrar-me disso, e da discussão que tivemos nesse dia. Tu disseste-me que destruía tudo em que tocava. É verdade? Será que eu destruo tudo em que toco? Não sei se sou eu que destruo, ou se simplesmente as coisas não dão certo para mim, o que sei é que, realmente não sou a mais sortuda das mulheres…
Há alturas em que penso que certas coisas são tão estúpidas, que só me acontecem a mim. Mas como todas as mulheres, sei que todas temos as nossas agruras, sem bem que umas mais do que outras.
Tenho um carro novo também, e é muito bonito. Tenho pena que não o possas ver porque sei que ias gostar. Para além de todas as comodidades que dispenso de descrever porque são intermináveis, tem uma coisa que eu adoro particularmente, que é a ligação ao ipod e o comando no volante. Agora já posso andar a ouvir a minha música aos gritos, sem aquele barulho horrível das colunas que pareciam duzentos sacos de plástico a resmalhar ao mesmo tempo.
Naqueles dias em que só me apetece gritar, entro nele, abro os vidros, ponho a música bem alta e canto a plenos pulmões, até me doer o peito e custar a respirar.
Muitas vezes vou à praia e fico a olhar o mar. Sento-me na areia e fico ali a divagar em pensamentos, a ver o sol a pôr-se, e a pensar que o dia seguinte vai ser melhor. E mal ou bem, acaba por ser. Fico mais calma, mais leve…Sacudo a areia da roupa e dos sapatos para não sujar o carro. Sim, porque carro novo é outra coisa.
Estou a pensar continuar a estudar fora de Portugal, fazer mais uma pós-graduação talvez. Estudar, evoluir, crescer, amadurecer, alargar horizontes. Acho que vai ser bom para mim. Afastar-me um bocado, começar de novo…É que às vezes sinto-me um pouco asfixiada…Assim com vontade de ganhar asas e voar, sair daqui, desaparecer. Mas por outro lado, os laços são cada vez mais difíceis de cortar, e sinto-me presa.
Sabes explicar-me isto? Esta vontade grande de partir, e as pernas que não me obedecem e paralisam-me para ficar? Ou será a cabeça? Ou o coração?
Bem, olha, já não sei, nem tenho a certeza de nada.
A única certeza que tenho, são as resmas de papéis em cima da secretária, à espera de dias melhores em que a minha paciência e concentração me permitam olhar para eles, a certeza dos problemas que tenho de solucionar, e as tarefas diárias escritas num post-it fluorescente que nunca chegam a ser totalmente cumpridas, e são sempre adiadas para o dia seguinte.
Disso eu tenho a certeza.
Tenho a certeza que de manhã me vai continuar a custar muito a acordar, mesmo que seja tarde, e que à noite vou continuar a não ter sono. Tenho a certeza que vou continuar a adorar passear, ir à praia, rir, brincar e fazer disparates.
Tenho a certeza que vou continuar a adorar pizzas, hambúrgueres, e toda a comida de plástico, apesar dos avisos contínuos da ameaça cardiovascular. Tenho a certeza que vou continuar a adorar ver filmes nos domingos chuvosos de Inverno, tapada com uma manta no sofá, com a minha gata em cima das pernas e as chamas a crepitarem na lareira. A certeza que sempre vou adorar ler livros e escrever. A certeza que vou continuar a gostar de fazer compras e experimentar roupas.
Tenho a certeza que vou continuar a ter as minhas dúvidas existenciais, as minhas paranóias, receios e inseguranças. De que choro quando é preciso, e não tenho vergonha disso. De que rio sem parar, mesmo quando às vezes estou triste. De que grito e digo palavrões no trânsito como um verdadeiro carroceiro. De que tenho mau feitio, sou resmungona, stressada, e digo tudo como os malucos quando me passo da cabeça. De que tenho alguém com quem posso contar, ouve todas as minhas baboseiras e me limpa as lágrimas.
A certeza de que tenho saudades tuas e de estar contigo.
De andarmos juntos no baloiço do parque e entre risos, desafiar a gravidade.
Estas e outras, são as únicas certezas que tenho. Mas isso agora também não interessa nada, porque quem é que precisa de certezas, quando pode ter dúvidas??
Só sei que nada sei, bem dizia o outro…
E se calhar, até tinha razão.
Rita
Texto registado no IGAC

domingo, 22 de novembro de 2009

A Máscara


Esta manhã não conseguia sair da cama. Foi como se uma força invisível me puxasse para debaixo dos lençóis e me dissesse que este dia-a-dia alucinante não adianta de nada e que portanto, melhor seria ficar na cama. Tentei lutar contra esta falta de ânimo que me esmaga, arranjei coragem e forças não sei onde, para me agarrar a ideias positivas, e levei o meu dia de trabalho para a frente sem pestanejar.
O Francisco mandou-me um e-mail a perguntar como eu estava, porque me tinha visto chegar com uma cara péssima. Respondi-lhe que andava com excesso de trabalho e preocupações, e que tinha dormido mal, mas que não era nada de mais. Ele perguntou – me se era mesmo só isso, e eu confirmei que sim. É um querido o Francisco, às vezes até parece que se preocupa comigo a sério, mesmo sem termos grande nível de intimidade. De vez em quando vamos beber café lá fora, eu, ele e a Matilde que é uma colega dos Recursos Humanos que eu gosto muito, e falamos sobre montes de coisas, menos do trabalho aqui no jornal. O Francisco é um fixe e tem o dom de me fazer rir, mesmo quando estou triste. Está sempre a contar piadas e a gracejar sobre tudo, tem um sentido de humor impressionante e contagiante. A Matilde também é uma querida, e quando estou mais em baixo, ligo-lhes para irmos beber café, e falamos de tudo e de nada ao mesmo tempo. De tudo, porque falamos de tudo mesmo, como actualidade, coisas de família, amigos, etc. E de nada, porque nem eu nem eles sabemos, qual é o nosso verdadeiro e real estado de espírito.
É triste, mas hoje em dia, noventa e nove por cento das pessoas usa uma máscara tão impenetrável, que ninguém consegue saber genuinamente, o que é que os outros estão a pensar ou a sentir, se estão contentes, ou tristes. Porque é que as pessoas fazem isto? É para se protegerem? Para não darem parte de fracas? Mas porquê, se toda a gente já sabe o que é chorar e sofrer, seja por perder alguém que se ama, seja porque a vida não nos corre bem, seja por solidão? Cada um de nós que se esconde diariamente por trás dessa máscara, já experimentou esse tipo de sentimentos. Então, porque é que os continuamos a esconder com tanto pudor como se tratasse de uma nudez obscena em público? Não entendo, sinceramente, não entendo, e muito menos porque também eu alinho neste teatro, e todos os dias visto a minha máscara para ir trabalhar, como se fosse mais um casaco ou um par de brincos. Mas enquanto esses são visíveis e se eu os tirar nota-se, a máscara é totalmente invisível, e ninguém sabe se eu a estou a usar ou não. Por isso, é tão difícil hoje em dia confiar nas pessoas, porque nunca sabemos se elas estão a ser totalmente verdadeiras ou se afinal, têm a máscara posta.
Se não existissem estas máscaras, o Mundo seria bem mais fácil e eu não teria que pôr litros de corrector de olheiras para conseguir ir trabalhar, sem pensarem que eu sou uma criatura tirada do Aliens, e quando o Francisco me perguntasse se eu estava triste, eu não iria vestir a máscara, e iria responder-lhe simplesmente que estou muito triste e infeliz, porque discuti com o Miguel e ele saiu de casa, porque tomei três Xanax, e dormi no chão da cozinha envolta em lágrimas, ao frio e abandonada .
Aí, ele também iria tirar a sua máscara e contar-me que também anda muito triste porque a mãe dele tem cancro, e está no hospital a fazer tratamentos, e os médicos já não têm esperança, mas só ele é que sabe, nem o pai dele suspeita. E assim, ele já poderia tirar a máscara em frente ao pai e contar-lhe que a mãe está a morrer, e se calhar só tem mais uns dias de vida. E o pai ia chorar de certeza, agarrar-se a ele e dar murros nas paredes, mas ia ajudar a mulher, sabendo de antemão que ela não vai viver muito mais. E que adianta esta mentira, se ele vai acabar por sofrer à mesma quando a mãe morrer?
A Matilde também tiraria a sua máscara e contaria que o marido a traiu com uma brasileira que trabalha ali nos frangos de Moscavide e agora se vê a braços com um T3 em Telheiras para pagar e dois filhos de cinco e oito anos de idade, e despesas que não acabam mais. E só mesmo por isso é que ela não se separa do desgraçado. Por isso e por o amar acima de tudo, mesmo que ele seja um traste da pior espécie. E aí estaríamos os três e toda a gente, nus como viemos ao Mundo, mas poderíamo-nos ajudar mutuamente, sabendo das desgraças da vida de cada um.
Eu aconselharia a Matilde a vender a casa e a ir morar com os pais, o Francisco a contar ao pai que a mãe tem cancro, e dar-lhe ia força para enfrentar este pesadelo que ele está a viver. A Matilde dir-me-ia para tentar compor as coisas com o Miguel, e o Francisco certamente me passaria a mão pela cabeça e me diria que ele não era homem para mim, e que eu merecia muito melhor.
Agora assim…Assim, não podemos fazer nada senão fingir que temos vidas perfeitas e fingir que acreditamos que os outros também as têm.
Porque todos sabemos que todos sofremos, temos problemas, chatices, discussões, todos choramos por amor, por incompreensão, fúria e raiva às vezes. Isso não é nenhum crime de pena capital, não é nenhum sinal de fraqueza, muito pelo contrário. Então se assim o é, para que é que andamos aqui todos a representar felizes e contentes, a vida que gostaríamos de ter? A vida não é aquilo que gostaríamos que ela fosse, mas apenas aquilo que é, por isso de nada vale andar aqui a fingir que temos dia-a-dias perfeitos e cor-de-rosa em que tudo é feliz, e alegre e os problemas não nos afectam. Somos humanos, somos de carne e osso, e ferimo-nos diariamente, por isso para quê fingir?
Será que sou só eu que penso este tipo de coisas, ou estes pensamentos são comuns e recorrentes para toda a gente? Porque é que ninguém dá a conhecer a sua verdadeira cara? Por medo de quê? Eu sempre fui ensinada a ser verdadeira e genuína, a gritar se tenho vontade, a chorar se me apetece e a não esconder nada. Mas a partir de uma certa idade, comecei a perceber que não era assim que as coisas funcionavam no mundo real, e deixei de lado essa minha postura. A partir daí tentei tornar-me uma pessoa um pouco mais fria, mais racional e menos autêntica, em nome de uma regra que a sociedade ou mesmo eu, já nem sei bem, me impôs, em prol também não sei bem do quê. Sei que é assim, mas limito-me a agir de acordo com isso, sem saber porque é que é assim. Um dia, algum gajo maluco deve ter espalhado numa carta corrente ou num e-mail desses que correm Mundo, que dava azar demonstrar aos outros os nossos próprios sentimentos e desnudar as nossas fragilidades e inseguranças, e começou a ser prática corrente ocultar as nossas amarguras e tristezas, na vã ilusão de que isso nos torna mais fortes. Mas é mentira, pois só nos torna mais fracos e incapazes de lidar com esses sentimentos, de os assumirmos perante os outros, e sobretudo perante nós mesmos.
Porque às vezes passamos tanto tempo com a máscara, que acabamos nós próprios por acreditar nas tristes mentiras que contamos aos outros.


Rita


Texto registado no IGAC

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Amor pela Boca



Vou fazer um jantar especial em minha casa e convidar alguns amigos e aquele alguém especial. Mas o que é que eu vou cozinhar? Tem de ser uma coisa elaborada e sofisticada, que eu não vou convidar o pessoal e depois servir bifinhos com natas e cogumelos! Tem de ser uma coisa em grande!
Decido começar a investigar bibliografia sobre culinária, e é com essa ideia em mente que me dirijo a uma enorme livraria no Saldanha. Chego lá com uma energia fora do normal, e decido embrenhar-me nos livros. Adoro livrarias. É um espaço amplo e iluminado, mas não em excesso. As paredes estão forradas de livros, desde o chão até ao tecto, e tudo está organizado e dividido por temas: Actualidade, Arquitectura, Design, Direito, Economia, Esoterismo, Política, etc. Cheira a papel novo, a letras, e a livros por abrir. Simplesmente delicio-me com este cheiro, e sinto que podia passar a minha vida toda aqui, ou pelo menos, uma parte significativa dela. Tudo está decorado em tons sóbrios de castanho e preto, com estantes em madeira, e existem diversos sofás de couro preto espalhados pelas diferentes secções. Uma empregada de meia-idade, com carrapito vermelho, óculos de massa pretos, e uniforme cinzento dirige-se a mim com um ar austero. Parece uma governanta daquelas mansões fantasma, ou então uma directora de um colégio interno. Sorrio-lhe, um pouco intimidada, e pergunto onde é que fica a secção de culinária.
Ela aponta-me com um sorriso um bocado altivo, um canto ao fundo da loja, e eu avanço a passos largos e confiantes nessa direcção, com a sensação de que algo vai mudar na minha vida em curto espaço de tempo. Se calhar ela devia pensar que eu ia pedir um livro de economia ou de política. Agora deve estar a achar que sou uma doméstica básica. Bem, não quero saber, era o que mais faltava estar-me a preocupar com o que pensa uma empregadazeca de balcão com carrapito vermelho.
Descubro com espanto que existe vasta bibliografia sobre culinária, pois centenas de livros apelativos se encontram nesta secção, desde cozinha italiana, japonesa, oriental, africana, indonésia, australiana, portuguesa, essa não que já conheço, até livros sobre cozinha de fusão e de moléculas, com tubos de ensaio na capa, e minhocas azuis e verdes fluorescentes que mais parecem saídas de um filme de ficção científica. Isto é que já é demais para mim, custa-me a aceitar que a comida se faça com fórmulas matemáticas e em tubos de ensaio, em vez de ser nos tachos e panelas e no tão tradicional forno a lenha. Isso para mim não é comida, é um atentado. Mais valia fazerem um comprimido que substitua todas as necessidades nutricionais diárias, assim já ninguém precisava de comer, nem de sujar louça. Era bom para os solteiros, que têm preguiça de cozinhar. Um comprimido ainda vá, agora chamar cozinhar a deitar uns pós e líquidos dentro de tubos de ensaio, esperar que aquilo deite fumo e agitar numa máquina que parece de análises sanguíneas, é muita ficção científica para mim. Logo eu, que odeio a Guerra das Estrelas. Bem, mas vou esquecer estes atentados gastronómicos que não são o que eu estou à procura. Percorro as estantes com o olhar, e sinto-me em casa. A livraria está deserta, só está um senhor na secção de Economia, sentado num dos sofás de couro preto, com o olhar perdido em livros muito chatos, cheios de números e teorias sobre a macroeconomia, e sem desenhos, nem cores.
Tenho de que dar uma vista de olhos geral e optimizar as minhas decisões, pois com os meus recursos orçamentais só vou poder levar um livro, por isso tem de ser um mesmo bom e completo, com receitas maravilhosas, sofisticadas, fáceis de fazer, e tem que ser barato. Bem, sou mesmo exigente.
Um livro com deliciosas iguarias na capa, e com fotografias apelativas chama-me a atenção. É um livro de cozinha indiana de uma senhora hindu que me deixa completamente louca. Chama-se «Amor pela Boca». Sinto uma emoção tão forte, que sei que tenho de comprar aquele livro, pois algo me diz que ele é o instrumento essencial e indispensável para a minha felicidade neste momento! Perfeito, na contra-capa para além de descrever e originalidade e beleza da comida indiana, ressalta também o seu poderoso efeito afrodisíaco! Lindo!
Abraço-me instintivamente ao livro com gratidão e reconhecimento, como se ele fosse o meu novo e melhor amigo, e dirijo-me à caixa para pagar, tão feliz, que parece que vou a flutuar em cima de nuvens. Olho para a página inicial do livro e procuro descortinar o preço. Cento e dez euros? Um livro? Ainda por cima de culinária? Estarei a ver bem? Compreendo agora porque é que Portugal tem a taxa mais reduzida da Europa de venda de livros.
Decido que aquele livro tem de ser meu, custe o que custar, aliás tenho a íntima convicção de que ele foi escrito a pensar em mim. Contudo, a miséria franciscana em que me encontro deixa-me inquieta, porque já estamos no fim do mês e ainda não recebi, e tenho o dinheirinho todo contado para as minhas despesas. O que vou fazer?
Volto para trás para ver se não há uma versão mais reduzida e económica do dito livro, assim tipo de bolso ou qualquer coisa semelhante. Pode sempre haver um livro de bolso de comida indiana, não é?
Após apurada análise de tudo o que está ali naquela maldita secção de culinária, concluo que os livros são todos caríssimos e excedem largamente as forças do meu orçamento.
O único que poderia comprar chama-se «Cozinha para principiantes», tem uma capa muito feia, amarela, com uns legumes, e só ensina a fazer arroz branco, ovo estrelados e peixe cozido.
Penso que é melhor comprar o livro indiano no princípio do mês. Porém, nada me impede de passar uma ou duas receitazinhas para me ir entretendo a praticar, antes de comprar o bendito livro, e assim posso fazer o jantar à mesma! Sinto-me muito envergonhada ao tirar da mala o meu conjunto de bloco e caneta da Agatha Ruiz de la Prada, mas sei que é por uma boa causa, porque afinal de contas, os meus propósitos são extremamente louváveis.
Olho em redor e a livraria está deserta. Começo a passar as receitas a uma velocidade supersónica, como se as minhas mãos estivessem ligadas à corrente eléctrica. Mas quando estou no melhor da festa, começo a ver dirigir-se a mim, com cara de poucos amigos, a funcionária-governanta da livraria. Os passos dela assemelham-se aos de um dragão enfurecido, e parece que vem a deitar labaredas e fumo pelas narinas. Tem os olhos de tal maneira fora das órbitas, que até saem dos grossos óculos de massa, e caminha pesadamente na minha direcção. Oiço os passos dela, nuns sapatos pretos de salto grosso, que ritmadamente, batem no chão de madeira da livraria, como tambores que anunciam a minha desgraça eminente. O cabelo vermelho, puxado para trás no carrapito, dá-lhe um ar terrivelmente demoníaco, como se me viesse me infligir um castigo violento. O monstro já viu o que eu estou a fazer.
Tenho vontade de fugir, mas não posso. Estou paralisada. Tenho o livro aberto, em cima dele o bloco, e na mão a caneta. Que mais provas são precisas para demonstrar o flagrante delito? Absolutamente nenhumas. Tento reagir mas estou dormente e tenho picadas nas mãos. Parece aqueles sonhos em que vamos a fugir de um monstro, mas não conseguimos correr, caímos, e o monstro acaba por nos apanhar com toda a facilidade.
Com a pressa, ao fechar o livro para a empregada-dragão não armar problemas, a caneta escorrega-me das mãos e faz um enorme risco preto, mesmo na página do frango com caril e arroz biryaani.
A empregada-dragão pergunta-me com péssimos modos, o que é que estou a fazer. Eu fico muda, sem saber o que lhe responder. Mas não é preciso, porque ela já me topou a léguas, e sabe perfeitamente o que é que eu estava a fazer. Diz-me com ar de superioridade e arrogância, com os óculos encavalitados na ponta do nariz, que não posso estar a passar as receitas, ou compro o livro ou me vou embora.
Uma onda de raiva e um sentimento de humilhação sobe por mim acima, tenho vontade de lhe perguntar quem é que ela pensa que é para estar a falar comigo daquela maneira. Porém continuo calada, pois sei que se dissesse isso ia ouvir o que não queria.
Sinto vontade de chorar quando ela me tira o livro das mãos, abre-o na página e vê o enorme risco de esferográfica preto, mesmo por cima da perna de frango. Esbugalha os olhos como se fosse um peixe a asfixiar, e diz-me que já que danifiquei o livro tenho de o levar. Tento disfarçar com um enorme rubor que me queima as faces, e digo-lhe que aquilo não é um risco, é apenas sujidade, e já estava assim. E, acto contínuo, esfrego o dedo por cima do risco, pedindo a Deus que o meu dedo tenha poderes mágicos para apagar a porcaria do risco. Mas nada. O risco continua ali, a olhar para mim.
A bruxa da empregada-dragão diz-me, com o dedo espetado em direcção à minha cara de pânico, que tenho de levar o livro, senão vai falar com o gerente.
As pessoas que entretanto entraram na livraria, começam a aperceber-se do que se está a passar, porque está tudo em silêncio a caminhar pelas prateleiras, e só se houve a voz da bruxa-dragão, a matraquear e a dizer que tenho de levar a merda do livro. E eu com vontade de lhe dizer que até queria levar o livro mas apenas no princípio do mês!
No entanto, percebo que não há alternativa, e decido levar o livro e enfiar a viola no saco, para não passar uma vergonha ainda maior.
A mulher-dragão com escamas verdes e labaredas a sair do nariz escolta-me até à caixa como se eu fosse uma criminosa em fuga. A vergonha é tanta, que sinto o chão a fugir debaixo dos pés, e uma lágrima assoma ao canto do olho. Limpo-a com violência e decido que vou ser forte: estendo o cartão multibanco à empregada da caixa, e rezo para ter dinheiro suficiente na conta e aquilo não começar a apitar, senão aí é que vai ser do pior.
Suspiro de alívio ao não ouvir nenhum apito, e ao ver o talão a sair lentamente da máquina. Saio cabisbaixa, e decido nunca mais voltar àquela livraria.
Rita
Texto registado no IGAC

sábado, 31 de outubro de 2009

A Penthouse


Quando tinha três anos detectaram-me um problema qualquer no coração. A minha mãe ao pôr-me a mão no peito, sentiu que o meu coração estava a bater muito depressa e num ritmo irregular, e achou estranho. Levou-me ao médico pediatra. Ele auscultou-me com o estetoscópio e franziu o sobrolho, e ali ficou a ouvir atentamente, em silêncio, com o estetoscópio de metal gelado, colado ao meu peito. Eu não me lembro disto, só tinha três anos, mas sei-o quase de cor, só de ouvir a minha mãe contar… A partir daí encaminhou-me para um cardiologista pediátrico, e seguiram-se dúzias de exames ao coração, com a tecnologia mais avançada da época, no consultório daquele que era o melhor cardiologista pediátrico do país. A minha mãe, coitada, tinha de juntar dinheiro o ano inteiro para eu poder ir à consulta anual, e fazer os respectivos exames de controlo.
Até hoje, não sei muito bem o que tive ou ainda tenho. Na altura, o cardiologista pediátrico supra-sumo, após dezenas de exames e de auscultações intermináveis com o odioso e frio estetoscópio no meu peito, diagnosticou-me um problema numa válvula. Supostamente, a referida válvula teria uma configuração anatómica diferente do habitual, com mais tecido, e numa forma diferente, e logo deixaria passar menos sangue do que o que devia, e por isso provocava-me maior cansaço. Por sua vez, também havia um ligeiro «click», que era audível à auscultação, e que deixava todos os médicos fascinados pelo meu coração, tentando descobrir que raio tinha eu dentro do peito, para fazer aquele barulhinho tão intrigante.
Mas mesmo eu, até hoje, também não sei responder o que tenho dentro do peito que faz esse barulhinho, por isso também nunca os pude ajudar a descobrir, qual a origem do click no meu coração.
O meu coração tem quartos, halls, jardins, piscinas, galerias de arte, moradias, apartamentos, e uma penthouse. É uma autêntica cidade. É um pequeno mundo, o meu pequeno-grande mundo. O Gabriel Garcia Marquez diz que o coração tem mais quartos que uma casa de putas, e eu concordo plenamente com ele. O meu coração tem pessoas, animais, lugares, flores, árvores, cores, histórias, livros, canções, recordações, cheiros e sensações.
Tu também estás lá, mas não quero falar muito disso. Posso apenas dizer que estás numa pequena casa térrea com jardim, arrendada, e o contrato está prestes a terminar, ou assim eu o espero. Por isso tens guia de marcha com ordem de saída, embora um pouco indefinida, dependendo da data em que o contrato de arrendamento da tua casinha termina. E isso eu também não sei…
No meu coração está a minha família, a minha mãe, pai, irmãos, à minha avó, o meu avô…Estão as tardes em que o meu avô me ia buscar à escola e íamos comer gelados, e ele me comprava presentes. E depois pedia, não contes nada à avó, senão ela diz que eu te estrago com mimos. E estragava mesmo, porque tudo o que eu pedia, o meu avô fazia, ou comprava, só para me ver feliz. Sem saber talvez, que só pelo amor dele, eu já era a menina mais feliz e amada do Mundo. O meu avô levava-me ao café e fazia o totoloto e o totobola enquanto punha o dedo na boca num grande schiuuuu e me pedia para não contar à avó. E dizia que ainda ia ser rico e ter uma sorte grande. E aí iríamos morar todos para uma grande casa com jardim, piscina e cães e gatos para eu brincar. Nesse dia da sorte grande ou da lotaria, íamos sair do nosso apartamento no terceiro andar de uma rua movimentada e cinzenta de Lisboa, e eu poderia finalmente aprender a andar de bicicleta sem medo de ser atropelada. E poderíamos correr à vontade, eu, o avô e a bola sem ser no Parque Municipal. Tudo isto dizia o avô enquanto sorria e flutuava em sonhos esfarrapados como bolas de algodão. O meu avô era um sonhador, e sempre alimentou os seus sonhos com a esperança de que um dia eles se fossem concretizar. A maneira como o avô falava, parecia fazer crer que aquilo ia mesmo acontecer, tal era a certeza e convicção que ele punha nas palavras e na forma como as dizia. De tal forma que eu sempre lhe perguntava, de cada vez que via mais um boletim do totoloto: é desta, avô? É desta que vamos ficar ricos? É filha, o avô tem a certeza que desta é que é mesmo, o avô tem uma grande fé nestes números. E eu ria, enquanto trincava um chupa-chupa, e pensava na boneca que ia pedir ao avô, quando o grande dia chegasse.
Mas esse dia nunca chegou. Mas penso também que o avô nunca desistiu que ele chegasse, até ao último dos seus dias. O avô era um jogador nato, e embora nunca tivesse causado prejuízos de maior à economia familiar, chegou a provocar alguns desequilíbrios orçamentais. Eram tempos muito difíceis, em que o dinheiro não abundava, e não existia a facilidade de acesso aos bens de consumo que existe hoje. As pessoas tinham pouco, e davam muito mais valor ao que tinham, tudo era motivo de alegria e orgulho, cada pequena migalha que se conquistava. Não é como hoje, em que as pessoas banalizam as coisas de tal forma que já não é concebível viver sem elas, mas também não lhe dão qualquer valor, precisamente porque são normais e toda a gente as tem.
O avô ia comigo apanhar musgo para pôr no presépio de Natal. E apanhávamos também pedras, e areia para fazer os caminhos, pelos quais os reis magos iam levar as oferendas ao Menino Jesus. O avô levava um canivetezinho suíço, que sempre o acompanhava, e tirava lascas perfeitas de musgo verde e sedoso das paredes, que levávamos para casa e regávamos com um borrifador para não secar, até ao Dia dos Reis, em que desmanchávamos tudo. Depois fazíamos a aldeia, cheia de caminhos, água, pontes, casas, e por fim, as figuras tradicionais do presépio. Ficava lindo, e para mim o presépio era mil vezes mais importante do que a árvore de Natal. Talvez porque adorava ir com o avô, cheia de casacos, gorro e cachecol, o ar gélido a sair da boca, e a fazer fumo, e o avô sempre a dizer, cuidado para a menina não se constipar, Maria, põe-lhe o cachecol e as luvas. E a avó sempre a enterrar-me o gorro na cabeça e a pôr-me o cachecol em cima da boca. E lá íamos nós para o campo de mãos dadas, o avô levava um saco para pôr o musgo, as pedrinhas e a areia, e eu levava a alegria dentro do peito, porque ia fazer o presépio com o meu avô.
O avô tem a penthouse maior, mais luxuosa e confortável do meu coração, com usufruto vitalício. Embora na vida dele, o grande dia em que ia ganhar um prémio milionário e levar-nos a todos para uma casa linda e grande nunca tivesse chegado, eu dei-lhe de presente, o canto mais especial e bonito do meu coração. Onde ele irá habitar para todo o sempre. O avô aí está, nesse cantinho único do meu coração, e nunca de lá vai sair. Às vezes, parece que até o oiço rir dentro do meu peito. Entristece-me saber que ele não me viu crescer, não me viu entrar para a faculdade, acompanhou nos últimos anos da vida dele a fase pior da minha vida, em que eu era uma adolescente revoltada, e ele um velhinho maravilhoso que me dava sempre razão, e me defendia perante tudo e todos, mesmo que eu estivesse a fazer a maior asneira do Mundo. Tenho pena que ele não visse a minha bênção das fitas, o meu primeiro emprego, e um dia não possa ver o meu casamento e os meus filhos.
A vida é muito injusta mesmo, porque me levaste o meu avô tão cedo? Fazes-me tanta falta avô, tu que foste mais que meu pai, tu que me criaste, embalaste, contaste histórias, viste nascer os meus primeiros dentes, me levaste ao médico nas noites febris, aturaste as minhas birras, que me levaste à escola, me sentavas a teu colo, me ensinaste à jogar às cartas, ao dominó, ao xadrez, e a tudo o que era jogos. Avô, às vezes ainda falo contigo à noite, e te peço ajuda para as decisões mais difíceis, será que tu me ouves? Onde tu estás, consegues ver-nos, tens saudades nossas? Avô, eu nunca te esqueço, nunca, e tenho tantas saudades tuas! Às vezes rio-me sozinha a pensar se tu voltasses daí de onde estás há já quatorze anos, não havias de conhecer este mundo maluco. Agora há tanta coisa nova e diferente, que tu não ias acreditar: telemóveis, que são telefones pequeninos que toda a gente tem, e usa a todo o instante, deve ser para não nos sentirmos tão sozinhos, dão para telefonar e para mandar mensagens escritas, ver as pessoas com quem estamos a falar, tirar fotografias, etc. Há uma coisa muito gira, que te tinha dado muito jeito no teu tempo, que é o GPS, que funciona através de um satélite, e dá para ver qual é o sítio onde te encontras. E se estiveres perdido, ele diz-te qual o caminho certo para onde tens que ir, e mesmo se te enganares, ele ajuda-te a chegar lá. Se houvesse GPS no teu tempo avô, a avó de certeza que te tinha comprado um, para te ajudar a encontrar o caminho certo para saíres do jogo, e não voltares lá mais. Mas paciência, avô. A vida é mesmo assim….
Hoje em dia, os computadores também fazem coisas incríveis, não estás bem a ver, e eu também nem te sei explicar, porque para mim, tudo isto são banalidades. E sei que se tu visses isto tudo, com os teus olhos enormes e curiosos, não ias acreditar, e ias pôr a cabeça entre as mãos, e sentar-te no sofá, como tu fazias quando não sabias o que dizer, e estavas impressionado com alguma coisa.
Mas voltando ao coração, depois de tantos anos, os médicos ainda não sabem bem o que é que eu tenho afinal. Há uns anos num exame de rotina, um médico viu um fluxo de sangue estranho e disse-me que podia ser um canal aberto, e se fosse isso teria que ser operada. Pensei que estava a sonhar, caiu-me tudo ao chão. Então passados tantos anos, ninguém viu que este suposto canal estava aberto? Agora com esta idade é que me vão operar? Seguiram-se mais dezenas e centenas de exames, desta feita, mais sofisticados e caros ainda, que a saúde em Portugal está pela hora da morte, e só com cunhas é que uma pessoa se safa, e mais uma vez todos os médicos fascinados pelo click do meu coração, que ainda ninguém conseguiu descobrir de onde vem, nem mesmo eu, que poderia ter uma explicação menos técnica, e mais emocional para ele, mas nem mesmo eu sei….Depois de ouvir muitas opiniões diferentes, e nada conclusivas, regressei ao meu cardiologista de infância, que quase não me reconheceu, pois já tinham passado muitos anos. E mais uma vez, o estetoscópio no meu peito, e mais uma vez, o sorriso dele a dizer baixinho, este click. E eu só pensava, oh doutor, eu não quero saber do click, doutor eu nem sequer o oiço, e sinto-me bem, doutor, eu até faço exercício, eu até consigo correr para apanhar o metro de manhã, doutor, não deve ser nada de mal, senão eu tinha de ter alguns sintomas. Eu não quero saber do click, a menos que o doutor me diga que este barulho é alguma coisa de mal. Se calhar por causa desse maldito é que eu ainda não encontrei o caminho da felicidade, e me sinto sozinha, mesmo quando estou rodeada de pessoas que me dão atenção e carinho. Será por causa dele que há dias que tenho o coração apertado e esmigalhado, e pareço carregar o Mundo nas costas e as desgraças dos pobres, fracos e oprimidos, todas no meu peito, doutor?
Queria ter tranquilidade comigo mesma, conhecer-me, aceitar-me, sentir-me bem como sou, parar de ser ansiosa e querer controlar tudo, querer antecipar reacções antes das atitudes que as desencadeiam, querer interromper e alterar o curso natural das coisas e acontecimentos, só porque é aquilo que eu acho mais correcto, deixar de ser insegura…Será que isto tudo, é por causa do click, doutor?
Será que é por causa do click que o meu coração vive encolhido, e que eu não consigo esquecer o passado?
Tem sido o click misterioso que tem destruído a minha vida amorosa, doutor? É por causa dele que até hoje o meu coração anda doente, não tem um dono em condições, que goste dele, que o estime e o ame para todo o sempre, a sério, com corpo e alma?
Mas as palavras não saem, e eu perco-me em pensamentos tristes, enquanto sinto o estetoscópio gelado no peito. Mas já nem me importo, de tão familiar que me é a sensação. E para o doutor também, que fecha os olhos, concentrado, a ouvir as batidas irregulares e descompassadas do meu coração, enquanto esboça um leve sorriso. E nesse momento, eu tive a certeza, que com este estetoscópio tão moderno, também ele conseguia ouvir, não só o click do meu coração, mas por detrás dele, o riso alegre do avô que me acena da janela da penthouse no meu peito.
Rita
Texto registado no IGAC